Crianças em dia de chuva

     Anões e garça suspiram no jardim gratos pela vida incólume.

RECANTO FELIZ

      Assim dizia a placa fixada na madeira, no centro e no alto. Era o nome da casa de praia no Pinhal. O pátio grande e o verde gramado no espaço aberto para jogar bocha e cruzar a vizinhança para acesso a outra rua. Mas o mais importante da casa era a rede colorida e ampla para a menina que se balançava a inventar histórias...

Tardes de domingo

    Meninas entre correrias e gritos em volta da pitangueira. Fala alta na cozinha e o Sílvio Santos na tevê. O bolo, os cróstolis, a torta de bolacha maria e o afago de avó na pele da memória.

Para Lygia

Nas horas nuas releio As meninas e me desnudo. Me embriago, me entorpeço de invenção e memória. Fujo da ostra, renasço pérola. 

PAI

     Dentro do severo senhor esconde-se o sensível menino, mas só o enxergam os astutos, os capazes de atravessar as profundezas do olhar azul mar.

BARALHO

      O neto deixava o avô ganhar no carteado, gostava de enxergar o menino a refazer-se em sorriso e em olhar. A magia das cartas: por alguns instantes tinham a mesma idade!

Amparo

   

   Carregava em seu nome a proteção, logo ela que sempre fora tão frágil. No dia da partida do seu maior guardião, começaram a faltar-lhe as forças nas pernas e passou a agarrar-se à bengala.

   Às vezes, ao apertar o frio alumínio, ela fecha os olhos e sorri feliz pela rua ao sentir o afago e o calor da mão defensora.

Dentro da mala

     No bolso com fecho: calcinhas, sutiãs, meias, biquinis. No fundo: toalhas, moletom, casaco, calças jeans, blusas, camisetas, pijama, camisola. E bem dobrado por cima de tudo: o sonho que não pode enrugar, amassar ou sujar. O sonho deve regressar assim: impecavelmente belo como partiu.

Partida

     A mulher vivia a monotonia, mas sonhava com o inusitado.

Burocracia

    Ar condicionado, papéis, computadores, café, fila, indelicadeza, monotonia.

SOL

     Quando vinha o sol, a menina ia correndo abrir as janelas e sentir os olhos arderem com o brilho. Os adultos diziam que poderia cegar. Mas ela nem ligava: preferia a cegueira da lembrança alaranjada ao cotidiano cinza a que estava acorrentada.

ENCANTO

       Verborrágico, experiente professor de retórica, nunca havia imaginado tantas palavras contidas dentro de um olhar. Emudeceu fascinado pelo silêncio eloquente da mulher.

TESE

    Me sinto tomando homeopatia em conta-gotas, a escrever em doses diárias. Me vejo colocando semente na terra, a regar em horários cotidianos. As folhas, lentamente, vão surgindo. Um dia nascerá a árvore e, enfim, se dará a criação!

Sobre o democrático ato de protestar

      A empresária bem sucedida, que não assina carteira de sua empregada doméstica serviçal de sua família há vinte anos, carrega um cartaz pedindo o fim da corrupção, em língua inglesa. E a pergunta de Renato Russo, título de canção, permanece atual.

DA VIDA DUPLA

   Acordou nauseada pelo gosto da falsidade, postada por ela mesma, todas as manhãs, no facebook. Enquanto isto, na vida real: a família derretia, fedida como manteiga rançosa. Vomitou muito, antes de retocar a maquiagem para mais uma selfie e uma declaração de amor doce a um marido azedo.

BAILE

      Dançaram por longo tempo, apesar dos ritmos desiguais. Ele: Heavy Metal; ela: Bossa Nova. Conheceram-se em um Carnaval. Nenhum era do samba. Com máscara todos parecem iguais. Um dia o ritmo do outro passou a perturbar. O Heavy Metal estridente partiu pra rua a gargalhar a sua liberdade. A Bossa Nova melancólica ficou em casa a chorar o seu lamento.

CORPOS

 

  Abdômen, boca, coração, dedo, espermatozoide, face, garganta, hormônio, íngua, joelho, língua, mão, nariz, orelha, pescoço, quadril, rosto, saliva, tornozelo, útero, veia.