sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

GRAVIDEZ PSICOLÓGICA


      Solitária, tratava os livros como filhos, plenos de ciúmes e amor. Sentia-se parte deles, assim feito uma mãe. Um dia decidiu aventurar-se de leitora à escriba. Passou a sofrer com náuseas e azias. Nunca mais foi a mesma, cuspia papel, vomitava palavras, tocava o ventre a inflar-se na tela do computador. Jurou a si mesma que nunca mais se sentiria só!



quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

CRENTE



   Ele tinha um rosto que mais parecia pintura divina. Ao beijá-lo na boca por vez primeira, arrancou-lhe um pedacinho de Deus. E ela, até então, cética, ganhou fé.

domingo, 23 de novembro de 2014

ENLAÇADAS PELO LIVRO SAGRADO




           

   Emprestava exemplares à mãe. Na devolução, a filha folheava as obras à procura dos marcadores de página esquecidos: novenas e fotos de santos. Assim o cordão umbilical se refazia e a literatura sacralizava-se.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

HAVIA UM BALANÇO NOS FUNDOS DA CASA



        Vai e vem, vem e vai e a menina vai crescendo. A inocência se esvai. Vai e vem, vem e vai. Um dia um hímen rompe. Fica uma gota de sangue no balanço.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

PREMATURO



          
 
    Aquele que um dia cabia em sua mão, hoje lhe enfia a mão na cara.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

HORIZONTE




O inatingível desejo de alcançar o novo, de dizer o indescritível, de encontrar forma para o nada e  para o tudo  através da palavra.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

DA ARTE ALIVIANDO A ALMA




Acordou com a notícia da morte da amiga entalada na garganta. Tentou de tudo: chorar, tossir, cuspir, vomitar, gritar. E nada. A dor permanecia ali a engasgar. Até que decidiu estampar a dor no papel. 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

PRIMAVERA




No dia em que mudou a estação, ela partiu para enfeitar o mundo, arrancou a própria raiz e saiu colorida a exalar perfume. 

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

SOLEDAD




Nunca gostou do nome. Superou o desgosto, inventando o apelido: Sol. Mesmo assim a vida seguia escura e solitária. Ao apresentar-se, ele insistiu no nome verdadeiro. Ela falou baixo, quase um sussurro. Ele repetiu, então, em sua orelha, o nome manso e sonoro. Nunca antes lhe parecera tão belo o próprio nome. No mesmo instante abandonou o apelido. Na manhã seguinte percebeu que nunca mais sofreria solidão. Amanheceu iluminada. 

domingo, 17 de agosto de 2014

RETICÊNCIAS




... com o padrasto ela descobriu o medo do próprio corpo, com a mãe ela conheceu a dor da palavra silenciada...

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

REDE

    O homem foi pescar. Não encontrou o peixe, mas a mulher. Saciou-se ao sugar o líquido salgado da boca da fêmea. Nunca mais teve fome de mar.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

ARDENTE


       O sabor no enroscar das línguas lembrou-lhe bala de menta. Só que agora a chama descia livre pelo corpo, não ficara presa na boca.

terça-feira, 15 de julho de 2014

OFEGANTE


     No momento em que ele aproximou o rosto do seu, ela adivinhou o aroma de novos dias, o futuro estava ali na respiração do outro. 

quarta-feira, 25 de junho de 2014

PEÃO


Nasceu conformado com seu lugar no tabuleiro. Não almejava ser rei, nem sequer aproximar-se de rainha ou dama. Ateu, do bispo manteria distância. Passou trabalho para avançar. Diante da fome, não vacilou: matou o cavalo, comeu e seguiu sua vida a passos lentos. 

terça-feira, 17 de junho de 2014

ENVELOPE


    Branco, selo do laboratório e nome do médico. A tosse, o gosto de sangue e a resposta em suas mãos. Rasga o envelope, coloca no cesto de lixo reciclável. Acende o cigarro e degusta a vida a evaporar feito a fumaça. 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

ARTISTA


   
 
   Pequeninho sofria com a enxaqueca. Com o tempo entendeu: eram as ideias aprisionadas. Naquele dia, ao longe se podia avistar o arco-íris saindo da cabeça do menino e rumando em direção ao papel.

domingo, 8 de junho de 2014

VIDA CINEMATOGRÁFICA


 Tapete vermelho, vestido decotado, carteira prateada, sorriso ensaiado, A diva busca a naturalidade no glamour. Medo, insegurança, ansiedade disfarçados em um talento do qual ela mesma duvida.  

quinta-feira, 5 de junho de 2014

MUNDO MOINHO

   
   Arte que vem, arte que vai. O encantamento preenche o espaço diminuto que se agiganta. De algum lugar Dom Quixote e Sancho Pança espiam. 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

ESTÉTICA DO FRIO


       Na solidão da madrugada: o vidro suado, o conhaque, a lareira acesa, ao som de Ramilonga a modelo dança agarrada à almofada.
            

quarta-feira, 21 de maio de 2014

A ESCRIBA


     Bebê saciava-se com a sopa de letrinhas, menina fartou-se com a história ouvida, adolescente enfastiou-se com o lido, adulta saturou-se com o imaginado. Envelheceu absorta de grafemas. Morreu obstruída pela palavra imperfeita.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

segunda-feira, 5 de maio de 2014

VIRTUOSE


    O dedilhar no violão do corpo da mulher e o compasso do prazer a surgir lento e perfeito. 

quarta-feira, 23 de abril de 2014

DUPLICIDADES


   Em Segredo testemunhou o falatório, em Feliz viu a depressão, em Progresso observou a decadência, em Harmonia deparou-se com a dissonância e no Bairro Tristeza ela encontrou, enfim, a alegria. 

domingo, 13 de abril de 2014

NOZ MOSCADA


     Na panela de ferro, a pitada generosa no molho de tomate a ferver e a saudade da vó a invadir a cozinha e a alma.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

NO FLORESCER DA VIDA


    Sempre lhe apetecera o sabor das flores. Na mesma época em que aprendeu a caminhar, descobriu o prazer suculento das pétalas. Assim foi desabrochando a exalar aromas primaveris. Doloroso foi o despontar dos primeiros espinhos...

VISÃO DE MUNDO


      Somente após o acidente e a cegueira, ele passou a encarar a vida de frente.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

DESARMONIA FAMILIAR

  
      O pai sempre soube, a mãe nunca quis saber. Quando eram crianças, um acreditava no tesouro no fundo do mar, o outro queria voar. No mesmo dia: o surfista afogado e o paraquedista esmagado entre pedras.

terça-feira, 1 de abril de 2014

O PODER DA PALAVRA


      Ela gritou um Merda!, bateu a porta e saiu. E ele ficou sentado no sofá da sala, com a certeza de que ela jamais regressaria. Era uma mulher de poucas e definitivas palavras.

segunda-feira, 31 de março de 2014

QUEBRA-CABEÇA


     Em um momento de lucidez, rasgou a foto com a figura masculina. Na insanidade do dia seguinte, procurou pequenos papéis e formou o homem. Estavam, agora, ele: reconstruído; ela: esfacelada.

sexta-feira, 28 de março de 2014

SONHADORA


      Apesar de perder-se à toa, viver no mundo da lua, desconhecer a diferença entre direita e esquerda ou empurrar e puxar, foi capaz de perceber o amor do olhar azul refletido no seu castanho.

terça-feira, 25 de março de 2014

IDADES



    Apesar das rugas fez-se menina outra vez ao procurar conchas à beira-mar. E, ao olhar o vai-e-vem das ondas, voltou no tempo e feito peixe reaprendeu a nadar em seus sonhos de meninice.

domingo, 23 de março de 2014

Outono


    Deitado no chão, junto às folhas amareladas, debaixo da árvore plantada por eles um dia, o homem relembra aquela que partiu levando o calor da estação, do corpo e da alma.

sábado, 15 de março de 2014

DOCE INFÂNCIA


Ninguém por perto, abriu a gaiola, um aperto forte no pescoço até ouvir o crack e correu feliz para brincar de enterro.

sexta-feira, 14 de março de 2014

quinta-feira, 13 de março de 2014

GINÁSTICA LABORAL



    No velho e fétido edifício: o quarto no terceiro andar. Noites e madrugadas no sobe e desce, no desce e sobe: os degraus da escada e as camadas de pele.

sábado, 8 de março de 2014

ONDAS

   

 Quando se despediram, sentiu o gosto salgado da lágrima. Havia compreendido, enfim, a fala da avó: “a vida é feito onda, tudo vai e volta”. O primeiro beijo fora à beira mar.

sexta-feira, 7 de março de 2014

OVELHA


   Aos dezesseis percebeu a diferença: arrumou a mala, bateu a porta e partiu em busca de novo rebanho! Dois dias depois voltou para casa, decidida a branquear-se ao longo da vida. Morreu infeliz!

quinta-feira, 6 de março de 2014

terça-feira, 4 de março de 2014

TARÓLOGA


       

]      Leu o anúncio da promessa de amor em três dias, anotou o endereço e tomou rumo. Lá chegando, bateu o olho de cima a baixo na morena de turbante e saia longa transparente e nem precisou das setenta e duas horas.

INCRÉDULA



Para ela, morar em frente à igreja, era um inferno!

GENUFLEXÃO


         
   
     Ao sair suada da sacristia sempre relembra a brincadeira da infância: “Quem chegar por último é a mulher do padre!!!!!”
            Nunca fôra boa corredora!


PARTIDOS


Depois que ele partiu, ela o mesmo fez com o cd, rompendo-o em dois pedaços.
Não funcionou!

A música permaneceu em seus ouvidos, assim como o beijo molhado dele em suas orelhas.

FRAGMENTAÇÃO ESTÉTICA


Ao folhear os livros e colocá-los um a um na estante, foi reencontrando pedaços de si mesma espalhados pelas páginas.

DA AMARGURA


O filho da doceira fartava-se com tantos açúcares. Passava o dia a lamber colheres e a raspar panelas, mas jamais teria o doce beijo da mãe. A vida permaneceria amarga!

O SEXO E O REALISMO MÁGICO


A adolescente está sempre no pomar. A mãe pensa que pela atração às frutas. Nem imagina o que fazem, entre as árvores, a garota e o gnomo.

NADA ECLÉTICO





A esposa resolveu matricular os dois (ela e o marido) em um curso de dança de salão. Após seis meses: formatura e diploma. E os leitores perguntarão curiosos: e o casamento? Ah! Este já havia dançado há muito tempo!

UMA DOSE DE AUTO-REFLEXÃO E UMA GOTA DE PIEDADE




Sempre que a visita, lembra do sonho das duas adolescentes: correr o mundo! À prima faltaram-lhe pernas.

ENCONTRO RIMADO





Tinham a mesma mania: escrever versos na palma da mão. No dia em que se conheceram, entrelaçaram os dedos, formando, enfim, o poema.